Havia, em um tempo que já não sei medir, uma amiga querida chamada Emília Fernandes. Mulher de Dom Pedrito, Senadora da República, professora, mas com alma espalhada por Livramento. Certa vez, em um de seus aniversários, brindou os convidados com um churrasco generoso, desses que aquecem o peito antes mesmo de aquecer o estômago. E, como se já não bastasse o festim, chamou para cantar ninguém menos que Miro Saldanha, um dos grandes compositores da música gaúcha, a quem fui apresentado.
Devo confessar: ando falando muito sobre música. Sobre quem canta, sobre quem compõe, sobre quem faz do verbo um lamento ou uma esperança. E por quê? Porque sou tomado por essa paixão. Porque a música não é apenas som: é resgate. É um barco que nos puxa de volta à superfície quando a vida nos afoga.
Naquela noite, entre um acorde e outro, a voz de Miro entoou uma de suas mais belas canções: Primavera Pampeana. Desde então, os versos se fixaram em mim como se fossem uma segunda pele:
“Morena, quando esta Pampa
já não ouvir meu cantar,
beirando o rio é onde eu quero morar!
E, quando o sol de setembro
tocar minh'alma de piá,
vou renascer no canto de um sabiá!”
E o que seria “beirando o rio”, senão o desejo de voltar para casa? Casa, essa palavra de sabor ancestral. Palavra que se escreve com cheiro de café e som de passos conhecidos no corredor.
Há tempos venho me preparando para um retorno. Não é apenas uma mudança de endereço, não é somente um deslocamento no espaço, é o reencontro com meu chão. Quando parti, carreguei Porto Alegre dentro da mala, mas ela sempre insistiu em transbordar. Florianópolis me deu belezas, maresia e um céu que se desenha em azul quase perfeito. Mas me deu também a ausência do que sou, do que fui e do que sempre serei.
Gosto de Bauman e de suas reflexões sobre tempos líquidos, amores que escorrem entre os dedos, relações que se diluem. Mas se há algo que resiste à liquidez do mundo, é essa necessidade de pertencer. De fincar os pés no chão que reconhecemos como nosso.
Porto Alegre tem suas falhas, seus desencontros, suas esquinas onde a vida tropeça. Mas ali repousam os meus afetos, os meus lugares de descanso, os suspiros que me embalam antes do sono. Meu pôr-do-sol predileto é o de lá. O cheiro das flores que me despertam memórias que brotam naquela terra.
E é por isso que volto. Porque, apesar de tudo, casa não é só onde se mora. Casa é onde a alma reconhece o próprio nome.
Comentários: